História, narração e memória são três estruturas básicas da existência e da resistência. Temos dever de não esquecer o passado, reconhecendo-o, temos dever de não deixar o presente passar sem ser visto. Refletir sobre o que passou e pensar no que está acontecendo é o que vai definindo nossa identidade como comunidade. A valorização das histórias de vida das pessoas, contadas por elas mesmas, resume os princípios do fazer histórico que defendemos. Acreditamos que todo sujeito tem história e que toda história tem valor. E, por ter valor, toda história merece ser preservada para futuras gerações.
O Museu Digital de Heliópolis é uma das muitas formas da comunidade narrar sua própria história, possibilitando que o passado ajude a construir o futuro e que ambos sejam fontes de sentido ao presente. Criar um Museu vivo que permita formas distintas de narração e compartilhamento de experiências diversos é o objetivo deste projeto que foi criado, idealizado pela UNAS – União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região em parceria com a Universidade Federal do ABC – UFABC no projeto Produção e reprodução do conhecimento em Heliópolis: fortalecendo as bases de um bairro educador.
A área de Heliópolis foi adquirida em 1942 pelo Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários – IAPI, do Conde Sílvio Álvares Penteado e outros. Em 1966, com a unificação dos diversos Institutos do INPS – Instituto Nacional de Previdência Social, a terra passou para o IAPAS – Instituto de Administração Financeira da Previdência e Assistência Social. Em 1969 o IAPAS construiu o Hospital Heliópolis e o Posto de Assistência Médica – PAM. Outra parte do terreno original foi desapropriada pelo estado para uso da SABESP e outra parte foi negociada com a Petrobras. É nessa paisagem que, entre 1971 e1972, a Prefeitura de São Paulo retira 153 famílias de áreas ocupadas na favela da Vila Prudente e Vergueiro, com a intenção de fazer vias públicas e as acomoda em alojamentos “provisórios” no terreno do IAPAS, alojamentos estes que se tornaram permanentes.
A Unas reuniu em 50 anos mais de 15.000 fontes documentais – entre fotos, textos, panfletos e recortes de jornal – sobre suas atividades nas mais diversas áreas. Esse acervo está sendo catalogado e disponibilizado – em fases – para o público por meio do software livre tainacan, que possibilita a gestão e compartilhamento deste acervo, além de facilitar a preservação e a comunicação do que é produzido pelo Museu ao grande público. O que está disponibilizado no Museu até o momento é resultado do trabalho da Frente Memórias formada por membros da comunidade de Heliópolis e da UFABC ao longo de duas fases de catalogação e criação de quatro coleções iniciais que foram denominadas: Bairro educador, Cotidiano e Vivência, Paisagem e Território e Organização Social. A Q é coordenada por Lindener Pareto Jr, historiador, professor da PUC-Campinas e Suze Piza, filósofa, professora da UFABC, Douglas Cavalcante, responsável pelo setor de comunicação da UNAS-Heliópolis e Beatriz Bondi Felix dos Reis, Bacharela em Ciências e Humanidades pela UFABC.
O Museu digital de Heliópolis não é possível sem a escuta dos moradores e moradoras. Na página Histórias de vida, há um espaço para que você, morador, moradora conte sua história e ajude a construir o museu.
“Ah, o futuro de Heliópolis ainda vai ser uma cidade muito bonita, muito grande, ainda vou ver muitas coisas aqui: muitos prédios, muitas casas, coisas novas… Porque quando eu vim aqui, pra morar aqui, era barro, filha, não tinha água, não tinha luz, não tinha nada. Só do jeito que tá, pra mim já tá representando o céu.”
Uma das mais antigas moradoras de Heliópolis, Zoraide queria ser professora, mas saiu do colégio de freiras para trabalhar em casa de família. Lá ela conheceu o marido, com quem foi morar num quartinho alugado coberto de lona. Quando tiveram de sair, procuraram João e Genésia, que arrumaram um terreno para eles em Heliópolis, onde criaram os filhos e os netos, passados mais de 30 anos. Em 2008, em decorrência de um incêndio, tiveram de se retirar para um prédio, com auxílio aluguel da prefeitura, onde ainda moram.
Em frente à antiga casa destruída pelo fogo, Zoraide reencontra a menina dos seus olhos: o pé de abacate, “Esse pezinho aí é uma relíquia, era um abacatinho assim, ó, menina!”. Durante a remoção dos escombros, as máquinas aplainando o terreno, Zoraide chorou. Pensou que fossem arrancar o abacateiro. Mas o operário informou: “Isso aqui não pode arrancar!”.
Aí Zoraide ficou alegre de novo.